domingo, 14 de junho de 2020

Limitações da linguagem - Enrique Lihn




A linguagem espera o milagre de uma terceira pessoa
(que não seja o ausente das gramáticas árabes)
nem um personagem nem uma coisa nem um morto
Um verdadeiro sujeito que fale de si, com uma voz inumana,
daquilo que nem eu nem você podemos falar
bloqueados por nossos pronomes pessoais

Temos aqui um homem, apertando o gatilho contra a própria têmpora
Ele vê algo entre este gesto e sua morte
Ele o vê durante uma partícula elementar do tempo
tão curta que não fará parte dele
Se alguma coisa pudesse alargá-la sem temporalizá-la
uma droga (descubram-na!)
seria possível escutar os primeiros pálidos ecos
de uma inédita descrição daquilo que não é



[do livro Diário de muerte]
imagem: "Saturno devorando o filho", de Francisco de Goya, 1823

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Nada tem a ver a dor com a dor – Enrique Lihn



Nada tem a ver a dor com a dor
nada tem a ver o desespero com o desespero
As palavras que usamos para designar essas coisas estão viciadas
Não há nomes nesta zona muda
Ali, segundo uma imagem que uso, a morte viciada espera seus novos amantes
empertigada até a náusea, e os médicos
são seus cabeleireiros, manicures, seus usuários usurários
que a negociam, dosificam, domesticam, encarecem
porque esta besta vaidosa é uma enorme devoradora
Nada tem a ver a morte com esta imagem da qual me retrato
todas as formas que temos de nos referir às coisas estão viciadas
e este é só mais outro modo de torná-las viciadas
Talvez os médicos sejam apenas sábios e a morte – menina
dos seus olhos – um querido problema
que a ciência resolve com soluções parciais, isso é, difere
seu nódulo insolúvel selando uma pleura, para começar
Pode ser que eu seja uma dessas pessoas que pagam qualquer coisa por um tal trâmite 
Vou afundar no luto de mim mesmo, mas cuidando de manter
certa compostura como agora nesta consulta
Quero morrer (de tal ou tal maneira) este já é um verbo descomposto
 e absurdo, e que vai, direi algo mas razoavel-
mente, claramente fora da linguagem nesta
zona muda onde uns nomes não conseguem ser
quando alguém, que alívio, já está morto, esquecido espero que previamente de si mesmo
essa coisa morta que existe na linguem e que é
seu pressuposto
Invoco na consulta o Deus
da não mesmice, mas sabendo que se trata
de mais uma ficção
sobre a união do Oriente e Ocidente
de parágrafos, comentários e prólogos
Um morto que ainda tem alguns meses de vida teria que aprender
para se lamentar, desesperar e morrer, uma linguagem limpa
que só fosse acessível para além da matemática dos especialistas
de uma ciência impossível e igualmente válida
uma linguagem como um corpo operado de todos os seus órgãos
que vivesse uma fração de segundo à maneira do resplendor
e que falasse o mesmo sobre a felicidade e a desgraça
a dor e o prazer, com um desespero
sorridente, mas isso já é dizer
uma mera obviedade com o apoio
de uma figura retórica
minhas palavras não podem obviamente atravessar a barreira desta linguagem desconhecida
frente à qual sou como um babuíno convocado por extraterrestres a interpretar
a linguagem humana
Ai Deus teria que falar da felicidade de morrer de alguma forma inapreensível
disso que acompanhou a inocência o orgasmo todo mundo e cada um
dos momentos que marcaram a memória
com impressões descontroladas
Quando na primeira ejaculação
– muito mais mística do que a primeira comunhão – pensava em Isabel
ela não era uma pessoa mas sua imagem no resplendor orgástico desta criatura
que se viveu o fez apenas para outros diluindo-se carnalmente
no momento dos demais
deixando apenas um rastro de resplendor na sua memória
isso era a morte a morte veio e se tornou
o clique da máquina de memorizar essa repugnante devoradora
empertigada em palavras como estas, sua poesia em suma é a morte
o sonho da letra onde todo incômodo tem seu lugar
a prisão de seu ser que o privava do outro nome de amor escrito silenciosamente no muro
ou figuras obscenas untadas de vômito
sua vida que – outra palavra – deslizou sem ter podido
engrupir no existente se deter no passageiro fundir o focinho
feliz na tigela, bater pedindo um asilo noturno
com o seu amor como com uma pedra
a morte foi aquela que se disfarçou de mulher no sótão
de uma casa de pedra e para você de sombra e fumaça e nada
porque já não podia cortejar a sua dona, tremendo
de prazer de perdê-la debaixo de uma claraboia com teias de aranha
você precisa reconstituir este momento agora que a dona da casa é a morte
e não aquela outra, esse nada essa fumaça essa sombra
dar a si o prazer de ser ela e de se juntar a ela assim como os lábios de Freud que beijam a si mesmos


[do livro Diario de muerte]