sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Passando o tempo em Skansen – Kenneth Koch


Um dia fui dançar em Estocolmo em um lugar aberto ao público
Ao ar livre. Era um agradável fim de tarde de verão,
Verão desses que só na Suécia de mil novecentos e cinquenta. 
Para estar ali era preciso ser jovem.
Ou talvez velho. Mas na ocasião não cheguei a ver nenhum velho por lá.
A humanidade se dividia entre homens e mulheres, americanos e outros, estudantes e não-estudantes, etcetera.
A única coisa que eu sabia dizer em sueco
Era “Yog talar endast svenska”
Que queria dizer Eu só sei falar sueco, mas eu achava que queria dizer
Eu não sei falar sueco.
Então, as garotas, encantadas, falavam comigo muito rápido
Ao que eu sorria sem entender coisa alguma,
Embora às vezes eu repetisse
Yog talar endast svenska.
O entardecer tinha chegado ao fim, a minha parte nele ao menos, quando eles começaram com as danças folclóricas.
Eu não fazia ideia de como encará-los, embora tenha tentado por um tempo.
Ainda estava claro lá fora embora já passasse das onze.
Eu me meti em uma espécie de bonde que por fim me deixou perto do hotel.



domingo, 6 de novembro de 2011

Uma conversa com Patrícia – Kenneth Koch



Patrícia não quer
Falar de amor ela
Diz que só
Quer fazer amor
Mas ela fica falando
De amor quase sem parar.

É horrível é
A pior coisa do mundo
Diz Patrícia
Nada
Nem a morte nem a loucura
são tão ruins quanto o amor

Eu estou sempre
Apaixonada estou sempre
Sofrendo de amor
Diz Patrícia. Agora me
Acostumei mas
Continuo sofrendo do mesmo jeito

Você sabe o que eu fiz com ela
Uma vez? – falando de sua
Namorada – Eu chutei ela
Literalmente chutei ela estava sentada no chão e eu
Dei uns colpi di piedi assim uns
pontapés. Ela escorregou no chão.

Sabe o que ela fez
Comigo? Prometeu que íamos viajar
Eu estava pronta esperando
Com malas e bilhetes
E ela chegou e disse que uma amiga dela achou que ela
não deveria ir, e pronto. Eu chutei ela

Sabe às vezes a gente ainda fica
Junto. Mas o amor é horrível. Eu achei
Que você seria a pessoa
Certa para ter esta conversa Patrícia já que
Você ama as mulheres e ao mesmo tempo
É uma mulher. Você deve ter razão Patrícia

Disse. Mas eu acho que 

para essa mulher que te abandona você deveria
Sumir do mapa. Embora talvez com ela
não adiante nada
Não, sumir do mapa não adianta.
É difícil dizer eu não conheço ela

Se eu a conhecesse se eu pudesse vê-la
Por apenas dez minutos – Eu tenho medo
se você a vir você pode
Levá-la de mim. Patrícia
Ri. Não, não aconteceu comigo ainda
Graças a deus de gostar de mulheres jovens assim.

Por quê? Quando você tiver a minha
Idade – ainda jovem – ela terá
Trinta... e nove? Você convive bastante
Com pessoas bem jovens para
Saber como elas são horríveis
E você não gosta delas

Você não quer ter nada
A ver com elas! Hum
Hum, eu disse apoiando
As mãos sobre a mesa e depois tirando
Olhe para você desculpe mas eu tenho que rir
De você sentado neste horrível

Restaurante já de
Madrugada em uma
Cidade em que você não quer estar
E por quê? Por esta mulher
É horrível eu sei mas também
É engraçado

Eu sei eu disse. Ouça tenho
Uma idéia. Você tem o endereço dela? Você sabe onde
Ela mora? Você deveria ir até lá
E se esconder
Do lado de fora da casa dela
Atrás das árvores

Então quando ela sair
Você a afronta
Você a enfrenta. Você verá
nos olhos dela
Se existe amor ou não. É algo que não se
Pode esconder. Não tem erro, você vai saber.

Funciona. Comigo sempre
Funcionou. Não vai funcionar comigo. Não posso
Ir e me esconder lá. É verdade
Disse Patrícia quando há amor tudo
Funciona quando não há, nada funciona. O amor
É um deus Eu não acredito em nada dessas coisas freudianas

Esse deus para quem você tem que fazer
O que ele quer que você faça você
Está com raiva mas tudo o que você realmente quer
É tê-la de volta. Então – vingança! Se
Essa mulher tivesse feito algo assim comigo
Eu simplesmente não iria mais gostar dela na verdade

Eu iria odiá-la Você deve levar em conta
Disse Patrícia que essa mulher pode estar
fazendo isso para testar você. Não,
eu disse. Eu sei que não é isso. Eu sei de algo. Eu me sinto
Cem anos mais velho. Você não
parece tão mal assim, Patrícia disse.

Procure outra mulher. Não posso. Eu
Sei Patrícia disse. Mas sempre achamos que
esse é um bom conselho. Mas se
Você não pode não pode. Eu
Não consigo nem comer
Isso aqui Patrícia eu disse.

Desculpe Patrícia eu disse por te
Chatear não consigo parar de falar Me
Perdoa. Você não está me chateando
Patrícia diz Este é meu assunto preferido
E não é todo dia que a gente vê alguém nesse estado
e que a gente pode ajudar alguém dizendo apenas para ficar vivo.

Você sabe, disse Patrícia, se ela
Faz essas coisas com você agora
Ela fará de novo
E de novo então é melhor estar pronto
Talvez você possa se adiantar
E dizer que ela tem razão e que você

Não a ama mais Tchau Que você vai embora
Mas se você a quer mesmo
Você deveria ir para trás das árvores
E surpreendê-la quando eles o virem
Isso sempre faz diferença
Não posso ir me esconder lá Patrícia

É loucura. Eu fui mas sem
Me esconder e sem afrontá-la.
Patrícia: O que ela disse? Eu disse:
As mesmas coisas. Patrícia disse
Você viu amor nos olhos dela? Eu disse
Não, não vi. Eu vi

Alguma outra coisa. Em Florença está um dia nublado
O cabelo dela (relativamente) curto e
Os olhos à beira do Rio Arno
Foi a última vez em que a veria outra vez
Como esta que estou vendo outra vez
Quando ver outra vez ainda faz algum sentido

Acabou Patrícia dizia
Por enquanto mas não se preocupe
Eu acho que você vai tê-la de volta
Mas aí já será tarde demais. Ai Patrícia deixei
Minhas costas e cabeça despencarem na
Cadeira Tarde não quer dizer nada!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

como quem escreve um livro... – Haroldo de Campos



como quem escreve um livro como quem faz uma viagem como quem
descer descer descer katábasis até tocar no fundo e depois subir
subir subir anábasis subir até aflorar à tona das coisas mas só as
pontas as cristas as arestas assomam topos alvos de icebergs agulhas
fagulhas por baixo é a massa cinza cetácea o grosso compacto de tudo
a moleira opaca turva onde o pé afunda malares mongóis a pele cor-de
majólica sob um gorro de peles vogais molhadas líquidas vogais eslavas
pipilando ptítsas outoniça beleza ainda segura de si nos cílios ruivo-
claros quase sem mover o rosto que o queria como um filho que ninguém
ninguém o conseguira deter do brasil para a alemanha e fôra para o
fronte russo porque quisera sombras na majólica sim porquequisera e a
carta lhe caíra nas mãos majólica na sombra porquequisera a carta
que ela escrevera informando os parentes russa branca num hospital de
campanha sim as duas pernas sombra e majólica serraram as duas pernas
dele gangrenadas assistira a tudo e a carta não sabe como ainda hoje
não sabia fôra parar nas mãos dele com um tiro na cabeça sombramajólica
por engano nas mãos dele talvez um parente talvez uma noiva alguém
talvezsim no brasil não tivera mais coragem para dójd idiot dójd
assim se diz está chovendo a neve plumiscava lá fora ciscava branco
e o diabo não é tão feio como o pintam leque de dentes amarelos
o chofer lituano fizera a guerra fugira depois e os alemães não
conhecem o frio o friofrio pravaler friomesmo não tem na terra deles
se você não fica dando tapas nas orelhas beliscões seguidos nas
orelhas elas apodrecem e caem a ponta do nariz também as pernas nos
joelhos precisa mover sempre o corpo comer coisas grossas
gordurosas chouriços de carne gorda senão o sono o sonobomsono
torporestupor de fomessonobom tudobom calmocálido tudoquente como
um ninho um nicho bom de braço roliço um ventre macio de sonobom
ohquessoônoboom nesse colo fofo e quando acorda se-é-que não tem mais
dedos não tem mais pernas não tem mais cara por isso tanta gente
sem orelha sem nariz lepra glácea de inverno e guerra é isso guerra
divide o amigo que comia em sua mesa desde criança o amigo contra
ele por isso fugira para ficar livre de duma vez mas não é tão feio
o diabo piscopiscando agora parentes escrevem filhos na escola pobres
pobres não há operários estudando em faculdade lituânia tem uma língua
difícil muitos falam alemão e russo ele já era brasileiro o cisco
da neve doía nos olhos a majólica fanava no halo de sombra fôra melhor
assim quemsabe aquele gorro de peles comprara em moskvá quase todo
ano fazia essa viagem o marido representante comercial die worte sind
wie die haut auf einem tiefen wasser palavras como pele sobre uma
água profunda ou o derma do dharma o chilrear de pássaros daquele
outono numa aquele outono de pássaros chilreando numa para baixo
para cima katábasis anábasis o ritmo das coisas do mundo numa cama



"como quem escreve um livro" é um dos fragmentos das Galáxias, de Haroldo de Campos, livro que levou vinte anos sendo escrito e foi publicado pela primeira vez em 1984. Uma das coisas mais lindas e incríveis que já li. 
A leitura feita por Haroldo de Campos aponta para o caráter de partitura do seu texto, todo escrito sem pontuação: a música é dictada pelo olhar, pela voz, pela escuta. A edição de 2004 de Galáxias traz um cd onde Haroldo lê 16 fragmentos do livro (foi dali que tirei o áudio acima). 
Gosto de lembrar também da epígrafe do livro (de mallarmé): la fiction affleurera et se dissipera, vite, d'après la mobilité de l'écrit. Leio as Galáxias seguindo o fio dessa ficção, que vai se movimentando e se desviando; vou sendo levada como neste sonobomsono ohquessoônoboom tudo calmo e cálido e cor de majólica, subindo até tocar no topo e descendo, descendo, assim se diz está chovendo.