“se penso na poesia
quais os
recursos ao lado do corte
poderiam contribuir para
tornar o poema
um poema?”
Marília Garcia,
um teste de resistores
No mais recente livro de Marília Garcia, cada poema se
constrói a partir de um teste de resistência: a tentativa simultânea de
desenhar um mapa; de atravessar o mapa enquanto esse de desenha; e de, por fim,
oferecer resistência constante a essa travessia. Cada poema incorpora tanto o
processo de sua composição, como a reflexão sobre esse processo. O desafio, que
a poeta cumpre muito bem, é criar um dispositivo que transforma reflexão em
faísca, objeto poético dotado de calor, por meio de um circuito de 11 poemas
que se completam uns nos outros, em um movimento “que vai se definindo/
durante o trajeto”.
A poeta escolhe começar com uma pergunta que também
vai se definindo durante o percurso. A poesia é uma forma de resistência?
Essa escolha, tal como o ponto de referência da filmagem de uma cena, redimensiona
“o espaço/ e nossa forma de entendê-lo”. O poema-pergunta que dá título
ao livro, A poesia é uma forma de resistores?, oferece-nos uma chave de
leitura para essa poética feita de resistências.
Esse pensar a poesia dentro da poesia submete o texto
a um teste de cortes e repetições que remete, em primeiro plano, à ideia de um
percurso intermitente. No cerne dos poemas, temos o deslocamento de espaços e
de significados: recortes de viagens e trajetos compõem o cenário sobre o qual
se desenrolam os deslocamentos de sentido, entremeados a uma concepção de
tradução como suporte desse deslocamento: tradução como passagem de uma língua
a outra (“uma forma de pensar nas possibilidades da língua/ a partir de
outra língua”); como passagem do significante ao significado; e como
leitura, ato pelo qual o poema passa de mão em mão, do autor ao leitor (“uma
forma de pensar em si/ a partir do outro”). Repensar, furar, “ler as
coisas de outra maneira”, chegar ao outro lado: “entrar no espaço
interior equivale a sair?”
O passo é a unidade rítmica dessa poética (“Seu
poema tem 15 passos”), nesse percurso que se faz sobre um mapa dobrado
sobre si mesmo. O ponto de partida (nosso poema-pergunta) determina as formas
de partir, mas também é por elas alterado; nosso ponto de partida é uma partida
jogada com o leitor. O grito com o qual se encerra o poema final (“surdo
estrondo a poeira e a última coisa aquele grito/ NÃO”) é a negativa que
liberta, que nega até mesmo uma resposta negativa à pergunta proposta pelo
mencionado poema: a poesia resiste à sua definição. No primeiro poema, Blind
Light, já se lê: “não consegui responder/ porque exigiam que
definisse questões no texto/ onde eu queria manter a dúvida”.
Em segundo plano, os cortes e repetições remetem ao
universo cinematográfico com o qual a obra estabelece seus diálogos. No
poema ordem alfabética, que compõe o livro um teste de resistores,
Marília relata como começou a escrever o poema a garota de belfast
ordena a teus pés alfabeticamente, no qual reorganizou os versos do livro A
teus pés, de Ana Cristina César, por ordem alfabética. Marília produziu um
vídeo a partir desse poema, por meio do corte e montagem de trechos do filme Je, Tu, Il, Elle (Chantal
Akerman, 1976). Vídeo, filme, poema original e poema reconstruído entrelaçam-se.
A cena do filme Pierrot le Fou (Jean-Luc
Godard, 1965), reproduzida na capa da edição portuguesa, é um dos fios com os
quais Marília tece seu circuito: o recorte do filme, introduzido no poema Blind
Light, encena a abertura (“o furo”) que a autora produz na obra (“você
entra/ e percebe que saiu do outro/ lado”).
Na cena citada,
os amantes Ferdinand e Marianne fogem em um carro conversível vermelho. A
câmera os filma a partir do banco de trás do carro, o que significa que o ponto
de vista do espectador é de quem está de fora. Em um determinado momento,
Ferdinand vira-se para trás, para a câmera, e se dirige ao espectador: “Estão
vendo? Ela só pensa em se divertir.”
No livro de Marília, autora e leitor também olham para
a câmera: a poeta o faz, ao refletir sobre a poesia; o leitor, por sua vez,
encara a câmera ao ser chamado para dentro dos poemas. Tal como o “espectador/ fura
o filme”, o leitor também fura o poema, “e insere nele uma espécie
de/ corte”; o leitor, essa descontinuidade necessária entre o autor e
o texto, é lançado no circuito descontínuo de sentidos que se deslocam nos
poemas: “o que sinto ao pensar em você/ ela disse/ é um furo”; “entrar
no espaço interior equivale a sair?”.
Marília remete-se explicitamente, no poema Blind
Light, acima citado, à proposta formulada por Giorgio Agamben², a partir da
análise do cinema de Guy Debord, segundo a qual a repetição e a paragem (o que
a autora chama de ‘corte’) seriam as duas condições da montagem, no cinema
contemporâneo. Repetição não tem aqui o sentido de ‘retorno ao idêntico’, mas
de ‘retorno em possibilidade daquilo que foi': repetir algo é torná-lo
novamente possível; ou, como retruca a autora, citando Gertrude Stein, repetir
é insistir: “não existe repetição/ mas insistência”.
A ‘paragem’, por sua vez, é entendida como o ‘poder de
causar interrupções': a ‘hesitação prolongada entre a imagem e o sentido’,
criada pelo jogo entre corte, enquadramento e montagem, é o elemento que revela
a proximidade entre cinema e poesia.
A alternância entre aceleração e desaceleração
rítmica, nesse teste de resistores criado por Marília, faz da duração a matéria
de seus poemas. A faísca não está nem no começo, nem no final: está no meio, no
caminhar, no por enquanto, no durante, no trajeto como poema
contínuo. A ideia de duração remete-se tanto ao uso, pela poeta, de
imagens que se fixam, por um instante, no poema; como ao uso dessa técnica no
filme La Jetée (Chris Marker, 1962), montado a
partir de imagens fixas, organizadas em sequência, e mencionado
no poema Blind Light: “uma linha aos olhos é uma
sequência/ de pontos”
A sobreposição de vozes também é um recurso de que se
vale Marília, “produzindo furos na própria escrita/ por onde podemos ouvir”:
Wislawa Szymborska, Adília Lopes, Ana Cristina César, Emmanuel Hocquard, Zuca
Sardan, Guillermo Cabrera Infante, Leslie Kaplan, entre outros. Poemas e temas
reunidos em outros livros de Marília reaparecem aqui, desmontados, deslocados: uma
paisagem revisitada com estranheza.
As ‘paragens’ e cortes são operados, no livro, por
meio da mistura de gêneros e registros de escrita, pelo recorte de trajetos
descritos como em um diário, pelos saltos no tempo, pela fragmentação temática
e, principalmente, pela alternância entre discurso poético e reflexão
metapoética, em camadas sobrepostas, como mapas: “escrevo a viagem/ e ela
acontece”. O processo até o poema torna-se também poema; no instante do “pulo/
para fora”, nesse “ponto em que ocorre/ um encontro“, o
mapa torna-se o país.
Notas:
1. Referência ao título do livro Ou o Poema
Contínuo, de Herberto Helder (Assírio & Alvim, 2004);
2. Agamben, Giorgio. “Difference and repetition: On
Guy Debord’s Films”. IN: McDonough, Tom (ed.) Guy Debord and the
Situationist International: Texts and Documents. MIT Press, 2004.
[03 de março de 2015, publicado no site O pintassilgo: http://opintassilgo.org/2015/03/18/poetas-achados-perdidos-marilia-garcia-um-teste-de-resistores/]
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