Um editor me pede para escrever de graça meu epitáfio Está organizando um livro de epitáfios de vários autores vivos
— que ideia mais macabra ele deve ter imitado de algum editor anglo-saxão —
Certamente o editor não sabe que há vinte dias fui atropelada por um carro e estou prostrada a perna direita para cima uma fratura um hematoma interno uma queimadura de terceiro grau
(o carro não teria me dado tempo
de escrever um epitáfio)
Rejeito a ideia
mas depois de um tempo passo a gostar dela
então mando um email para ele com meu epitáfio “Se eu não pedi que me trouxessem
A linguagem espera o milagre de uma terceira pessoa
(que não seja o ausente das gramáticas árabes)
nem um personagem nem uma coisa nem um morto
Um verdadeiro sujeito que fale de si, com uma voz inumana,
daquilo que nem eu nem você podemos falar
bloqueados por nossos pronomes pessoais
Temos aqui um homem, apertando o gatilho contra a própria têmpora
Ele vê algo entre este gesto e sua morte
Ele o vê durante uma partícula elementar do tempo
tão curta que não fará parte dele
Se alguma coisa pudesse alargá-la sem temporalizá-la
uma droga (descubram-na!)
seria possível escutar os primeiros pálidos ecos
de uma inédita descrição daquilo que não é
[do livro Diário de muerte]
imagem: "Saturno devorando o filho", de Francisco de Goya, 1823
Nada tem a ver a dor com a dor nada tem a ver o desespero com o desespero As palavras que usamos para designar essas coisas estão viciadas Não há nomes nesta zona muda Ali, segundo uma imagem que uso, a morte viciada espera seus novos amantes empertigada até a náusea, e os médicos são seus cabeleireiros, manicures, seus usuários usurários que a negociam, dosificam, domesticam, encarecem porque esta besta vaidosa é uma enorme devoradora Nada tem a ver a morte com esta imagem da qual me retrato todas as formas que temos de nos referir às coisas estão viciadas e este é só mais outro modo de torná-las viciadas Talvez os médicos sejam apenas sábios e a morte – menina dos seus olhos – um querido problema que a ciência resolve com soluções parciais, isso é, difere seu nódulo insolúvel selando uma pleura, para começar Pode ser que eu seja uma dessas pessoas que pagam qualquer coisa por um tal trâmite Vou afundar no luto de mim mesmo, mas cuidando de manter certa compostura como agora nesta consulta Quero morrer (de tal ou tal maneira) este já é um verbo descomposto e absurdo, e que vai, direi algo mas razoavel- mente, claramente fora da linguagem nesta zona muda onde uns nomes não conseguem ser quando alguém, que alívio, já está morto, esquecido espero que previamente de si mesmo essa coisa morta que existe na linguem e que é seu pressuposto Invoco na consulta o Deus da não mesmice, mas sabendo que se trata de mais uma ficção sobre a união do Oriente e Ocidente de parágrafos, comentários e prólogos Um morto que ainda tem alguns meses de vida teria que aprender para se lamentar, desesperar e morrer, uma linguagem limpa que só fosse acessível para além da matemática dos especialistas de uma ciência impossível e igualmente válida uma linguagem como um corpo operado de todos os seus órgãos que vivesse uma fração de segundo à maneira do resplendor e que falasse o mesmo sobre a felicidade e a desgraça a dor e o prazer, com um desespero sorridente, mas isso já é dizer uma mera obviedade com o apoio de uma figura retórica minhas palavras não podem obviamente atravessar a barreira desta linguagem desconhecida frente à qual sou como um babuíno convocado por extraterrestres a interpretar a linguagem humana Ai Deus teria que falar da felicidade de morrer de alguma forma inapreensível disso que acompanhou a inocência o orgasmo todo mundo e cada um dos momentos que marcaram a memória com impressões descontroladas Quando na primeira ejaculação – muito mais mística do que a primeira comunhão – pensava em Isabel ela não era uma pessoa mas sua imagem no resplendor orgástico desta criatura que se viveu o fez apenas para outros diluindo-se carnalmente no momento dos demais deixando apenas um rastro de resplendor na sua memória isso era a morte a morte veio e se tornou o clique da máquina de memorizar essa repugnante devoradora empertigada em palavras como estas, sua poesia em suma é a morte o sonho da letra onde todo incômodo tem seu lugar a prisão de seu ser que o privava do outro nome de amor escrito silenciosamente no muro ou figuras obscenas untadas de vômito sua vida que – outra palavra – deslizou sem ter podido engrupir no existente se deter no passageiro fundir o focinho feliz na tigela, bater pedindo um asilo noturno com o seu amor como com uma pedra a morte foi aquela que se disfarçou de mulher no sótão de uma casa de pedra e para você de sombra e fumaça e nada porque já não podia cortejar a sua dona, tremendo de prazer de perdê-la debaixo de uma claraboia com teias de aranha você precisa reconstituir este momento agora que a dona da casa é a morte e não aquela outra, esse nada essa fumaça essa sombra dar a si o prazer de ser ela e de se juntar a ela assim como os lábios de Freud que beijam a si mesmos