acordo
engasgado com um poema, cumpro um ritual
– não há espaço para a poesia
ando na rua, pego um ônibus, vejo pessoas
pessoas falantes, sonolentas, arrumadas, bagunçadas
– será que elas têm poesia?
(na boca? na cabeça? na bolsa?)
chego no colégio cedo, vejo colegas preocupados
não por causa disso, poesia, mas pelo teste
que vai acontecer
a primeira aula não acontece, a professora de literatura está doente
– muita poesia tem efeito colateral?
o tempo passa, o teste chega, a ansiedade grita
finalmente escrevo
escrevo números pensados por outras pessoas
escrevo cálculos tão elaborados que são quase poesia
quase
– o que define poesia?
hora do recreio, dia de profissões
(quase) todos vestidos do que “vão ser quando crescer”
meu namorado é cineasta
minha amiga é cineasta
minha outra amiga é fã de música coreana
– há poetas entre médicos, jogadores de futebol, professores, artesãos?
aula seguinte de francês, lemos textos sobre acontecimentos inusitados
quebras de rotina que são como poesia
– é possível uma rotina com poesia?
no fim da aula, encontro meu namorado numa oficina de literatura
ele encontrou poesia
ele ouviu poesia
ele escreveu poesia
lembro do poema que estava preso na garganto
o incômodo volta
– meu namorado é poesia?
almoço do dia: arroz, feijão, carne (sem batata) e conversas
conversas sobre aulas
sobre relacionamentos
sobre faculdade
não sobre poesia
– o que eu sei falar sobre poesia?
depois, meu namorado diz que tem algo a me mostrar
o poema Navio Negreiro, do Castro Alves
começo a ler, até que percebo que são seis páginas e paro
esse aqui tem só três
– consigo fazer mais?
chegou a minha vez de fazer a oficina
dessa vez é numa sala de espelhos que já viu muitos dançarinos
acho que a literatura encontrou o seu lugar
– existe lugar certo para a poesia?
enquanto ouço meu professor ler poesia,
escrevo um poema na cabeça
gosto do que chega os meus ouvidos
e do efeito que essas palavras têm em mim
– qual a diferença entre ler e ouvir um poema?
começo a escrever este poema
vermelho traduz o meu sangue
a mão que escreve é a mão da punheta
– é biologicamente possível gozar lendo um poema?
estou atrasado, preciso terminar este poema
todo poema tem seu fim
mas a poesia (ou não) está sempre por aí
ainda sinto um incômodo na garganta
o poema que estava (e está) entalado é outro
– como se livrar do peso de algo não escrito?
(escrito sob efeito de “blind light”, em maio de 2015)
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conheci o paulo santana aqui em são paulo
e ele me deu essa plaquete de 2015
cuja capinha abre o post
livro que cabe na palma da mão:
"meu namorado é cineasta"
de vez em quando posto aqui uma série de "poemas-que-conversam-com-o-teste de resistores"
e é uma alegria retomar a série com o poema do paulo
que vai sendo pautado por tantas perguntas
o paulo fez esse poema em maio de 2015 em uma oficina com o luis guilherme barbosae em junho de 2016 ele escreveu uma resposta
ao seu próprio poema, que segue abaixo.
o paulo v. santana eventualmente posta no blog estacaodonada.blogspot.com.)
o paulo v. santana tem 19 anos e é mais um carioca morando em são paulo
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poema-resposta
(junho de 2016; resposta à plaquete “Meu namorado é cineasta”)
nos seis meses que passaram
ninguém nasceu
mas muitos morreram
a busca pelo (meu) lugar da poesia continua
encontro na cidade
uma outra cidade
é como ele disse
são paulo é o texto que eu escreveria
a voz que dita poesia mudou
a mão que masturba não escreve
ainda não li Navio Negreiro
agora o feijão é carioca
meu namorado não é cineasta
meu namorado não é meu namorado
meu namorado não
e
dos poemas que escrevi
talvez
eu
não
seja
(o)
escritor