quarta-feira, 26 de agosto de 2015

[Agora termina o domingo...] – Leda Cartum



Agora termina o domingo:
é o primeiro domingo de agosto.
Hoje mais cedo fui à padaria
comprar velas e algo para comer
porque eu ia receber a Amanda
que chegaria dali a pouco;
tínhamos combinado de nos ver quando ela voltasse
de viagem. É que foi um encontro uma vez
no curso e depois no carro
que nos aproximou de uma forma firme e
forte. E ficamos de conversar mais
para trocar experiências mas
ontem cheguei em casa –
depois de também voltar de viagem –
e encontrei tudo escuro:
a Eletropaulo havia cortado a energia
por conta de uma conta de luz que não foi paga
três meses atrás.

A Amanda tinha me escrito
na sexta-feira
contando que tinha voltado
e sugerindo uma visita;
eu disse para ela: venha no domingo,
te recebo na minha casa.
Mas ontem cheguei
e a casa estava
sem luz.

Pensamos em marcar em outro lugar mas
por fim decidimos manter o encontro
com velas e sem luz.
Fui à padaria comprar velas
que eu não tinha em casa
e comprei também uma torta de palmito
e uma bandeja de doces árabes
para servir para a Amanda
que estava chegando.

Minha irmã subiu comigo até em casa:
veio pegar alguns quadros
que eu tirei da parede e ela quis levar
para pregar no quarto dela.
Na volta minha irmã cruzou com a Amanda:
elas se encontraram na porta do prédio;
uma saindo e a outra entrando
na minha casa sem luz.

A casa agora parece mais silenciosa,
alguma coisa muito antiga nessa falta de energia
com a qual recebi a Amanda;
com a qual nos sentamos para conversar;
que nos acompanhou durante a noite toda em que falamos
e falamos e falamos enquanto as velas queimavam
tanto que tivemos de acender outras –
outras que agora já estão quase no fim.

A Amanda acabou de sair:
ela estava com sono e
eu também um pouco cansada –
mas a conversa ia por tantos lados
tantos caminhos diferentes
que não sabíamos parar;
agora que ela foi embora
e a casa ficou vazia
e sem luz
eu não soube o que fazer no silêncio e
comecei a escrever.

Faz tempo que quero fazer um
poema assim:
contando.
Contando o que aconteceu.
Porque muitas das coisas que vêm –
que vêm no texto e fora do texto –
não são mais do que isso:
um relato do que foi o dia.
Como o que eu li uma vez num livro e
que me acompanhou até aqui
e depois, outra vez,
num blog;
escrever um relato –
um relato pensativo –
em versos:
de modo que o ocorrido adquire ritmo
próprio, como numa caminhada.

Faz tempo que quero contar dos
encontros que tenho tido
nesse ano longo e louco de
dois mil e quinze.
Parece que alguma coisa se abre
como uma clareira clara
no meio de uma floresta densa.
Cada encontro é uma descoberta
das coisas que eu nunca vi
perceber que as pessoas estão passando
por coisas como eu
e que passar pelas pessoas é também dar tamanho
às coisas por que passo;
perceber que as amizades são
a cada vez, a cada dia
uma coisa nova;
e que eu queria receber bem a Amanda na minha casa
porque estar sozinha me ensina a compreender
cada um dos encontro que tenho
como uma coisa muito preciosa.

Realmente trocamos muito:
falamos sem parar e cada ideia trazia
outra ideia
e outra
e outra.

Depois descobri que ela não está comendo
farinha branca
nem açúcar
por causa de um exercício em relação à gula:
nessa semana ela está tentando
se conter e perceber
o que é que realmente queremos
e o que achamos que queremos;
a gula – ela me disse –
é o medo de estar consigo mesmo.
(Acho que era assim
não tenho mais certeza
se eram essas as palavras que ela usou.)
Primeiro me senti mal por ter comprado,
justamente,
torta de palmito e doces árabes
para que comêssemos.
Depois entendemos juntas as escolhas
e rimos das escolhas
e continuamos a conversar
enquanto eu descascava a cera
da vela que já tinha grudado
no pires.

Muita coisa se cruza e fica
nesses diálogos noturnos
quando São Paulo é um mundo todo
cheio de outros mundos
que trazemos de volta das viagens
que fizemos e que nos trouxeram
de novo para cá.
Cada volta é tanta coisa –
mesmo a viagem tendo sido curta
(só três dias mas
a presença do mar parece que deixa uma camada a mais
salgada grudando na pele
que muda o jeito da gente ver as coisas) –
é tanto que fiquei mesmo impactada
quando entrei em casa de volta
e apertei o interruptor:
não funcionou;
a luz não acendeu;
e eu fui meio tropeçando até o quarto
e dormi num escuro mais escuro de sábado
para domingo;
pensando.

A Amanda me contou que lá na cachoeira enorme
onde ela estava
havia um coro que se sobrepunha à força
com que a água caía:
era um coro de vozes distantes
que eu quase ouvi quando ela contou –
umas vozes que não sei se vinham da cabeça dela
ou da cabeça de todo mundo
ou de cabeça nenhuma.

As vozes diziam:
obrigada
e repetiam
e depois diziam:
é de graça
e repetiam
e o tom subia
cada vez mais
e um refrão
foi se misturando
ao outro –
até que enfim
as vozes diziam:
obrigraça
e repetiam
e até apenas:
é de graça.

A Amanda cantou isso para mim quando
estávamos no meu quarto
com a vela parada sobre a cama
e os livros espalhados
que eu ia emprestar para ela.
Era um pouco como num filme
com aquela luz amarelada
e as sombras dançando;
era muita coisa boa
e difícil
e fácil
e grande –
tanto que eu quase consegui
ouvir o som da água
e o som do coro.
A gente pensou:
estar aqui nunca pode ser esquecer que
é possível estar em outro lugar;
e, ao mesmo tempo, também
estar aqui sempre tem que ser esquecer que
é possível estar em outro lugar.

(Não sei se pensamos isso aquela hora
ou se sou eu que estou pensando agora –
acho que não importa tanto.)

Ela partiu e levou
dois livros –
um deles é tão sagrado para mim que
eu nunca achei que iria emprestá-lo.

Mas ele foi e eu estou
contente.


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a leda cartum é paulistana e mestranda em letras na usp. 

a leda cartum publicou em 2012 o livro 
as horas do dia - pequeno dicionário calendário (pela 7letras)
a leda me mandou esse lindo poema como uma espécie de conversa com o teste de resistores
e ela disse uma coisa bonita sobre a autonomia de algumas conversas poéticas
que vão se formando e sendo produzidas quase como numa caminhada
ou como esse relato em versos /que adquire ritmo
próprio/ e sai andando por aí.

"cada encontro é a descoberta das coisas que nunca vi."


estou tão feliz com essa antologia de conversas com o teste de resistores!

a poesia andando.

2 comentários:

  1. Que texto lindo! Traz um momento, um encontro. Escrito com uma sensibilidade e delicadeza que da para sentir aqui, agora, bem perto. Adorei.

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  2. lindo mesmo, cristina! e você tem razão, dá para acompanhar o encontro de perto (a luz de vela que podia esconder ou velar alguma coisa acaba dando mais intimidade ainda p. o leitor seguir a cena...)

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