segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Felicidade – Ledusha



nada como namorar
um poeta marginal
incendiado
nada
como um mingau de maizena
empelotado
de tanto amor acumulado
uma casinha em botafogo
um quarto uma eletrola
uma cartola
                      &
depois da praia sonhar
que a bossanova voltou
pra ficar
eu você joão
girando na vitrola sem parar.



"felicidade" é do livro risco no disco, da ledusha, 
publicado pela primeira vez em 1981 (capinha que abre o post)
e reeditado agora pela luna parque (capinha de baixo).

sábado, 20 de agosto de 2016

Cândida – Chacal





acabou de sair
tudo (e mais um pouco)
reunião da obra do chacal pela incrível editora 34!
e revendo e relendo o chacal
acabei encontrando esses dias essa gravação de "cândida"
numa versão que saiu encartada na revista bric-a-brac, de brasília, 
num disquinho preto molenga (segundo o chacal nos anos 80).
a base do poema é uma composição 
de carlos henrique resende - o nanico.
esse foi o primeiro poema do chacal que conheci
conheci o chacal pela escuta
conheci o chacal pela voz
conheci o chacal ouvindo um poema
deixo aqui minha alegria pela chegada do tudo
com essa gravação linda de 'dama daminha'...








terça-feira, 2 de agosto de 2016

Três homens – Bernadette Mayer





descansando
Três homens descansam. Eles se mexem.
homens falando
uma garota olhando uma caixa
Tem três homens num barco. Eles trabalham.
um homem viajando
garotas esperando
Homens falando e cantando. Eles estão dormindo
um garoto de nove anos
três homens se mexendo
Uma garota olha uma caixa. Ela se debruça.
homens cantando
uma garota se debruçando
Ela está usando um casaco. Um homem viajando
ganha um prêmio.
um homem ganhando um prêmio
garotas piscando
Tem um homem na casa de luz. Tem outro comprando um relógio.
um garoto de azul
três homens num barco.
Garotas que estão esperando. Garotas  que estão piscando.
homens dormindo
uma garota usando um casaco
Garotas em uniforme andando de skate
um homem na casa de luz
garotas andando de skate
Um garoto de nove, de azul, perto da montanha.
um garoto perto da montanha
três homens trabalhando
três homens descansam. Eles se mexem.
um homem comprando um relógio
Tem três homens num barco. Eles trabalham.


***

a bernadette mayer nasceu em 1945
a bernadette mayer nasceu no brooklin
a bernadette mayer fez parte da escola de nova iorque 
            e do movimento da l=a=n=g=u=a=g=e p=o=e=t=r=y
"três homens" está no livro poetry, de 1976
a imagem que abre o post é da niki de saint phale, artista francesa (1930-2002)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Um compatriota punjabi no metrô de Barcelona – Amarjit Chandan





Quando você olhou
pensei aquele senhor está me olhando.

Você está sozinho?
Não veio mais ninguém?

Não posso trabalhar agora:
Não sou tão velho assim – pouco mais de vinte e cinco.

Estou aqui há seis anos.
A metade desse tempo passei em pé, preparando rotis no fogão dos restaurantes.
O dinheiro de Deus.
Muitos garotos enlouqueceram e se suicidaram.
Hipotecamos para o futuro o conforto de hoje.

Bahawalpur e Barcelona se distanciam cada vez mais.
A casa é uma ilha boiando no vasto oceano.

O sol dessa cidade acolhe todo mundo.
Deixe a neblina de Londres e venha morar aqui.

O metrô vai parar na próxima estação.

Descendo ele suspirou e disse:
Que época para suportar a dor.

E desapareceu abrindo caminho pela multidão.


**

amarjit chandan nasceu em nairobi, em 1946, e é um poeta de língua punjabi
amarjit chandan imigrou para londres em 1980
traduzi esse poema de uma versão em inglês (feita pelo próprio amarjit)
publicada na revista "modern poetry in translation" (mptmagazine.com)
– num número especial dedicado aos refugiados, 
"the great flight, refugee focus", 
cuja capinha está no post de ontem –, 
presente lindo que ganhei 
do rob packer (thanks, rob!)

domingo, 31 de julho de 2016

Neste país – Amarjit Chandan



Neste país o estrangeiro começa a perder a memória no dia em que chega.

Ele fica mudo na sua língua.

O ar em volta traduz o silêncio dele para o inglês -- 
Está nevando.
As folhas secas estão caindo.
As ondas do mar baixam.
O rio diminui.
O chá está esfriando.
As fotografias vão desaparecendo.

Ele fica pensando -- não deveria estar neste país.
Ele continua sendo um estranho aqui e
Começa a acreditar nos outros estranhos.

Uma peça quebrou na engrenagem do tempo.
O vinil fica tocando com a agulha presa na mesma faixa.

Neste país o estrangeiro não sabe o que faz.
Fica sempre inconsciente             perdido nos seus pensamentos.
Usa sapatos maojay de Punjabi com terno 3 peças.

Neste país o estrangeiro fica olhando para a foto do seu antigo passaporte
e se assusta ao ver a própria imagem.

Neste país o estrangeiro se surpreende de perceber que o caminho de volta para casa é bem longo
Quando está perdido na sua cidade natal, a lua lhe aponta qual caminho tomar
Ela o acompanha até que amanheça e ele bata à porta de sua própria casa.



**

amarjit chandan nasceu em nairobi, em 1946, e é um poeta de língua punjabi
imigrou para londres em 1980
traduzi esse poema de uma versão em inglês (dele e de julia casterton) 
publicada na revista "modern poetry in translation" 
(número especial dedicado aos refugiados, 
chamado "the great flight, refugee focus", colo a capinha aí embaixo), 
presente lindo que ganhei 
do rob packer (obrigada, rob!)



terça-feira, 31 de maio de 2016

Um presente para Graça – Bernadette Mayer



Eu vi uma linda chaleira E eu queria te dar essa camisa maravilhosa
100% algodão real e quadriculada de azul e preto,
Também tinha uma listrada de vermelho e preto
Depois vi umas botas num lugar chamado Chuckles
Elas chegavam até mais ou menos 5 cm acima do tornozelo
Todas de couro e em vermelho, preto ou roxo
Foi difícil não ter dinheiro hoje
Para não falar das flores e diversas lingeries
Todas em linho e seda com a renda ainda por perfumar
Com bastante brilho para qualquer Graça
E luxo, ornamentos, conforto e charme
Mas só posso presenteá-la com este poema –
que tem, como substância, o mesmo sentido do seu nome

domingo, 20 de março de 2016

Wall drawing 118 – Sol Lewitt



Numa parede, qualquer pedaço contínuo de parede, usando um lápis duro, faça cinquenta pontos ao acaso. Os pontos devem ser distribuídos com equilíbrio pela superfície da parede. Todos os pontos devem ser conectados com linhas retas. 


https://www.youtube.com/watch?v=RDrHHsez3nU

quinta-feira, 17 de março de 2016

Para ver as meninas – Paulinho da viola



Silêncio por favor
Enquanto esqueço um pouco
a dor no peito
Não diga nada
sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais
quem me deixou assim

Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas
E nada mais nos braços
Só este amor
assim descontraído

Quem sabe de tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito

Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito

quarta-feira, 2 de março de 2016

Íntimo [fragmentos] -- Pierre Alferi


Cara Sedentária

poucos quilômetros nos separam
porém ouço suas últimas palavras
em uma língua estrangeira
veja quantos dias sem estarmos juntos

será que realmente estivemos daquela outra vez?
algum dia você se convencerá
da minha presença ao seu lado?

deslastrado de minha sombra
os óculos desembaçados
eu olho para o leste


**


Caro Relativo

aterrissagem diferida
nos colocaram no centro
bem no alto de um hotel
do antigo regime (vai
saber quantos casais de
apparatchiks-prostituídos refletiu
o armário com espelho)
retorno ao quarto várias vezes
para digerir a sensação
de cidade em obras
fluida e cheia de arestas
consertar à máquina
pintar sobre um calco
o que falta ao strip-tease
de um campo em ruínas

de cima do décimo-terceiro andar
as transformações são claras
o vidro, obstinadamente líquido
e o céu mudo, como uma cobra

meus compromissos são adiados
o próprio motivo da minha vinda
sai para um passeio

eu tento o que me tenta
com o risco de perder um tempo louco
buscando objetos úteis
dando-lhes uma função
durante um ou dois minutos
sem fazer nada em um banco
entregue ao caos
de figuras, cores
sons

***


Caro Antiquário

para fazer voltar o tempo
você seria um salmão
ou um relojoeiro?
sugiro em vez disso
tocar um disco ao contrário
sonhar em húngaro

os monumentos ficam
muito acima das nossas cabeças
quando os devoramos

se a distância percorrida
fosse contada em séculos
eu desceria na planície
colocaria um belo chapéu
e deixaria crescer o bigode

***


Cara Íntima

enfim, próximos

você receberá esta
breve mensagem a tempo?
eu custo a terminar a clepsidra
e apagar as lembranças

se você ingressasse no paraíso
ele se pareceria a quê?

você tem tanta certeza
de que nos reconheceremos?
eu adio o momento
assobiando night and day

será que não esperamos demais
nos encontrar no mesmo lugar
no mesmo instante?

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

[quando seu aparecido chegou] – Sofia Mariutti




quando seu aparecido chegou
eu não costumava levantar pra fazer café
fatiar pão passar manteiga
eu ficava na cama até o último minuto
e o último minuto quase sempre
já era tarde demais
quando seu aparecido chegou
pra trocar o carpete
do condomínio edifício luciana
apareceu também a primeira barata
dentro do apartamento quatro
do condomínio edifício luciana
eu liguei o aspirador de pó e nós duas
guerreamos por meia hora e eu venci
com covardia depois de estraçalhar
o corpúsculo dela com o cabo
de vassoura dei mais alguns golpes
pra garantir o extermínio
o talentoso ripley mata o amigo
no barco com o remo
nem tão talentoso
ripley mata o amigo
com mais golpes do que o necessário
pra matar um amigo quantos golpes
são necessários pra garantir o extermínio
de alguém que amamos muito?
quando ripley mata o amigo
há paixão no assassinato
será que há paixão
entre a barata e eu?
clarice diz que para matar baratas
é preciso misturar farinha e açúcar
para esturricar o de-dentro delas
já sobre a morte do mineirinho clarice diz
“o décimo terceiro tiro me assassina”
com covardia
“o décimo terceiro tiro me assassina”
mais golpes do que o necessário
“o décimo terceiro tiro me assassina”
pra garantir o extermínio de um facínora
“o décimo terceiro tiro me assassina”
há paixão no assassinato
“o décimo terceiro tiro me assassina
porque eu sou o outro” eu
é um outro eu
quer ser um outro
mineirinho gregor samsa barata
seu aparecido 
quando seu aparecido chegou
eu morava há três meses no edifício luciana
e sentia falta de alguém pra conversar pela manhã
o seu aparecido me fazia levantar mais cedo
fazer café fatiar o pão assado na véspera
passar manteiga essas coisas todas
que eu não fazia antes
mas eu só me atrasava mais
conversava com seu aparecido
depois escrevia sobre ele
por que escrevo no passado
se estou no presente e o seu aparecido
está aqui ao lado?
hoje é o último dos três dias
da colocação do carpete e o presente não é memória:
o seu aparecido vai me deixar e nunca mais
vou vê-lo, franzino, com as mãos deformadas e feias
por que escrevo em versos
empilhados essa história?
talvez porque li os poemas narrativos
da marília garcia
e me deixei influenciar por ela
o seu aparecido tem setenta e cinco anos
quarenta de experiência com carpetes
o seu aparecido aceita café, aceita açúcar,
aceita pão, aceita manteiga,
pede pra eu deixar gorjeta, aceita um band-aid
que eu ofereço quando vejo a mão dele sangrar
o seu aparecido é do tipo que nunca diz não
não diz não
o seu aparecido reclama dos novos trens
comandados pelas máquinas
assim vai acabar o emprego dos homens
ele sabe que o emprego dele não está ameaçado
não há máquina que faça o meu trabalho
é uma autoridade dos carpetes empoeirados
trabalha como autônomo para várias lojas da cidade
já na casa dele na freguesia do ó não tem carpete
ele nem gosta de carpete
não gosta mesmo
o seu aparecido


**

a sofia mariutti é paulistana e fez letras-alemão na usp.
a sofia mariutti escreve palíndromos e anagramas 
(alguns estão no seu blog http://miafurtasitio.tumblr.com/)
a sofia mariutti é editora da companhia das letras.

o ano estava terminando

e eu resolvi encerrar essa série de conversas com o teste de resistores
mas depois recebi o poema da sofia
e continuei pensando nas linhas que vão ligando os poemas 
e fazendo a gente conversar e a seguir um ritmo 
e então eu começo o ano retomando a série 
com esse poema sobre o seu aparecido
(muito preciso
aliás
para essa semana de mudança 
em que ando às voltas com carpetes 
e sintecos e 
baratas)