terça-feira, 27 de maio de 2014
Eine nationale poesie? – Jacques Roubaud
Osnabrück, 27 de novembro de 1993.
@1
@1.1 Na minha família, o telefone não penetrou antes de 1945. Eu tinha doze anos. Era um aparelho grande e assustador, uma espécie de divindade, sem dúvida hostil. Meu pai não queria responder ao seu chamado, muito menos servir-se dele. A minha mãe cabia a tarefa de exorcizá-lo. Mas ela mesma não deve ter conseguido dominá-lo realmente. Com efeito, tendo-se passado vários anos, tínhamos deixado Carcassone, onde vivêramos durante toda a guerra (lembro-vos que houve uma guerra entre 1939 e 1945), e tínhamos vindo viver em Paris e um dia minha mãe recebeu um telefonema de uma velha amiga de lá, de antes. Elas falaram por um momento, deram notícias das famílias, das crianças, e, no momento de se deixarem, minha mãe disse: "Não vamos mais ficar tanto tempo sem nos falar. Toma o meu número de telefone." "É, você tem razão, me dá o número", começou a dizer a amiga. Neste momento, as duas começaram a rir.
@1.2 Quanto a mim, não avancei muito no domínio deste instrumento. Quando recebi uma chamada de Hamburgo me perguntando o título de minha intervenção de hoje, tive um momento de pânico. Pensando na inacreditável distância percorrida pela voz que chegava dessa maneira inverossímil à minha orelha, respondi bruscamente, com uma hesitação interrogativa na voz e na orelha: "uma poesia nacional?". E foi assim que me veio esse título e numa espécie de alemão que creio totalmente adequado e que adoto, consequentemente, pronunciando-o à minha maneira de quase analfabeto em assuntos germânicos: "Eine nationale Poesie?"
@1.3 Procederei da seguinte maneira. Num primeiro momento questionarei a ideia de nação. Num segundo momento me perguntarei o que a poesia pode ter a ver com a nação. Permanecerei mais ou menos no modo interrogativo, não tendo muitas respostas a oferecer, o que não me impedirá de expressar-me de maneira peremptória, como todo mundo.
@ 2
@2.1 Já faz alguns anos, a França, querendo mostrar que não guardava rancor da Alemanha por certos mal entendidos ocorridos em sua recente história comum, resolveu tomar-lhe emprestado a concepção de um movimento político de tendências fascistas, cujo nome é Frente Nacional e cujo chefe (era preciso ter um chefe) se chama Le Pen.
@2.2 Uma das ideias da Frente Nacional é: "A França aos franceses!", ou ainda "Fiquemos entre nós e as vacas estarão bem guardadas." Há estrangeiros demais na França, dizem, eles nos invadem, como outrora o fizeram os árabes vencidos por Charles Martel (um membro de honra da Frente Nacional) em Poitiers, em 732. Eles comem nosso pão, arruinam nossa segurança e nossa seguridade social. Em suma, "Eles vêm em nossos braços / estrangular nossos filhos e nossos companheiros". Bem, pelo menos simbolicamente.
@2.3 Então é preciso se livrar dos estrangeiros.
@2.4 Mas aí encontramos um problema. Se enviamos os estrangeiros de volta a seus lares, isso significa que, de modo claro e indiscutível, sabemos distingui-los dos franceses, que devem ficar em seu país. O que é um francês?
@2.5 Debruçando-se sobre a questão, a Frente Nacional, pela voz de seu chefe (é preciso um chefe que fale em nome de todos) propôs uma definição do francês.
@2.6 Definição de Le Pen: É francês aquele ou aquela cujo pai e cuja mãe são franceses.
@2.7 Entusiasmado por esta definição, compus o seguinte poema, já traduzido para várias línguas, digo com orgulho (isso não ocorre com tanta frequência), incluindo o alemão.
@2.8 Atenção: o poema deve ser dito bem rápido!
@ 2.9 Poema:
Le Pen é francês?
Se Le Pen fosse francês, segundo a definição de Le Pen, isso quereria dizer que, segundo a definição de Le Pen, a mãe de Le Pen e o pai de Le Pen teriam sido eles mesmos franceses segundo a definição de Le Pen, o que significaria que, segundo a definição de Le Pen, a mãe da mãe de Le Pen, assim como o pai da mãe de Le Pen, assim como a mãe do pai de Le Pen, sem esquecer o pai do pai de Le Pen teriam sido, segundo a definição de Le Pen, franceses, e consequentemente a mãe da mãe da mãe de Le Pen, assim como a mãe do pai da mãe de Le Pen, assim como a mãe da mãe do pai de Le Pen, e a mãe do pai do pai de Le Pen teriam sido francesas segundo a definição de Le Pen, e da mesma maneira e pela mesma razão o pai da mãe da mãe de Le Pen, assim como o pai do pai da mãe de Le Pen, assim como o pai da mãe do pai de Le Pen, e o pai do pai do pai de Le Pen teriam sido franceses sempre segundo a mesma definição, a de Le Pen
donde se concluirá sem problema e sem a ajuda de Le Pen ao se seguir o raciocínio
ou que existe uma infinidade de franceses que nasceram franceses segundo a definição de Le Pen, viveram e morreram franceses segundo a definição de Le Pen depois da aurora do começo dos tempos ou
que Le Pen não é francês segundo a definição de Le Pen.
Jacques Roubaud, provençal
@2.10 Tive que assinar provençal, não sendo eu francês, mas mais ou menos provençal, em todo caso o sou se remontar algumas gerações. (eu incluiria de bom grado o troubadour Rubaut entre os meus ancestrais, mas não consegui ainda determinar todos os elos perdidos de minha genealogia).
@2.11 A segunda alternativa, qual seja, que Le Pen não é francês segundo a sua própria definição, recebeu recentemente uma confirmação brilhante. Quando estive em Nova York para uma leitura no Poetry Project de St. Mark's Place e li meu poema, alguém no final me trouxe uma caneta de marca Le Pen. Ao examiná-la vi que ela era "made in Japan". Quod erat demonstrandum.
Tradução de Monique Balbuena
publicado na revista Inimigo rumor 7
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário