segunda-feira, 20 de julho de 2015

Para Marília Garcia – Julia de Souza











em janeiro de 2015
acordei um dia com os olhos inchados
as pálpebras vermelhas e irritadas
fui na dermatologista que pareceu um pouco espantada
e disse que eu estava com uma reação alérgica
que tinha provocado uma descamação importante
era muito difícil descobrir a causa
podiam ser os pelos das gatas que se acumularam
na casa durante os 10 dias que passei na praia
podia ser o calor que fazia em são paulo
podia ser o gás lacrimogêneo que inalei
quando tentei chegar ao protesto do mpl
na avenida paulista
podia ser algum cosmético mesmo os que você sempre usou
disse ela e também podia ser emocional

em janeiro de 2015 a dermatologista
doutora virgínia
receitou um creme com corticoides
para as minhas pálpebras
aos meus olhos eu estava muito feia
e muito perto do fracasso

em janeiro de 2015
quando retomei a leitura de um teste de resistores
percebi como para alguns poetas o diálogo é importante
não um diálogo velado ou imaginado
não a simples apropriação de versos de outros poetas
mas um diálogo verdadeiro
uma troca de perguntas e impressões
uma troca de reflexões sobre os textos
que acabam sendo incorporadas a novos textos
de forma mais ou menos explícita
no caso do livro da marília
isso é bem explícito

em janeiro de 2015 eu percebi como estava sozinha
e alheia a esses diálogos
que existiam só na minha cabeça
e quis pensar/escrever como a marília
justapor ideias aparentemente estranhas
para formular questões afins

em janeiro de 2015 eu voltei a caminhar
e as caminhadas nunca duravam muito tempo
no máximo trinta minutos
porque fazia muito calor em são paulo.
depois de uma caminhada eu pedi o computador emprestado
ao meu irmão para começar a escrever este poema
que talvez seja um exercício de simetria
de imitação
um jeito de dizer
je suis quelq’un
je suis julia
je suis marilia

alguns dos poemas de um teste de resitores
são como contos
são como crônicas
são como ensaios
não só porque contam histórias
mas porque têm um ritmo de caminhada
uma caminhada hesitante
uma caminhada de alguém que para
e se pergunta

os poemas de um teste de resistores estão
cheios de perguntas
os poemas de um teste de resitores têm
uma clareza importante
uma clareza de quem sabe qual é
a pergunta qual é
o assunto

a minha amiga jasmin
não me lembro se em 2007 ou 2008
ou 2009 recortou letras grandes de papel craft
e colou no alto da parede da sala
a frase qual é o assunto?
sempre que eu ia à casa da jasmin
e lia aquela frase
ficava bastante intrigada
eu não sabia se ela tinha colado aquela frase
no alto da parede da sala
para falar da falta de sentido
para falar da falta de clareza ou
para falar do tédio
acho que conversamos sobre isso
acho que nem ela sabia a resposta
afinal a frase fala justamente de uma
indeterminação.

quando eu digo que o livro da marília garcia
tem uma clareza importante
fico pensando nessa palavra
importante
quando a doutora virgínia
usou a palavra importante
para descrever a descamação da minha pele
esse importante quer dizer notável
esse importante quer dizer algo que não pode ser ignorado
mas quando eu digo que o livro da marília garcia
tem uma clareza importante
esse importante quer dizer não só algo que importa
esse importante quer dizer alguma coisa que se quer ter

ter clareza é se deixar atravessar?

[o vidro tem uma clareza ambígua
porque podemos e não podemos atravessar o vidro]

é preciso ter clareza para escrever
ou a clareza acontece no ato da escrita?
a falta de assunto é algo próxima da clareza?

no texto “a visão do fundo do poço”, louise bourgeois escreveu:
“não sei o suficiente para falar”
é preciso saber para escrever?
é possível aprender alguma coisa ao escrever?
“é tão difícil aprender. o que nos impede de aprender?”, escreveu a louise bourgeois.

em janeiro de 2015 eu pensei nesses versos:
talvez vocês consigam atravessar esse verão
mas poderão me perdoar pelo meu fracasso?

no texto “a visão do fundo do poço”, louise bourgeois escreveu:
“os outros não a julgam nem mesmo sabem que você está aí”

janeiro de 2015 foi um mês
de teste de resistências
foi um mês que eu atravessei e
não atravessei



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a júlia de souza é autora do livro covil (2013, 7letras)
a júlia de souza é paulistana e faz mestrado em literatura brasileira na usp.
a júlia de souza me mandou esse lindo poema no sábado
e eu gostaria de incluí-lo na série de conversas-com-o-teste-de-resistores
depois que eu li o poema da julia
eu fiquei pensando
e afinal qual é o assunto?

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