Eu não sei se Fernando Pessoa realmente existiu
(admitindo que saibamos o que existir quer dizer)
mas eu acho que ele existe à medida
que cada um de nós acha que ele existe.
E que neste sentido ele é único.
Não no sentido em que cada um de nós é único
– ou pensa ser –
mas no sentido em que Fernando Pessoa é único
isto é, como um gerânio
no meio de outros gerânios,
isto é, como todo mundo.
O que o torna tão diferente de muitos dos outros poetas
é a sua indiferença a todas as coisas,
dentre elas, à poesia e à indiferença.
Sua indiferença não é uma pose, nem uma atitude.
Ela é a expressão de uma inteligência viva.
Para Fernando Pessoa, ser inteligente é duvidar de todas
as coisas,
dentre elas, da inteligência e da dúvida,
é tentar se desfazer daquilo que aprendemos.
Fernando Pessoa maneja sua inteligência
como o contrabandista de Valery Larbaud usa
seu pequeno espelho de bolso
para ter certeza de que os funcionários da alfândega não
estão na sua cola.
Eu acho que ele tinha um olhar de mosca.
E que seus olhos de mosca lhe permitiam ver tudo
ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário,
e mais alguma coisa que não é exatamente seu contrário
e que é, no fim das contas, a mesma coisa.
Admitindo que Fernando Pessoa tenha algum dia existido
(e que tenhamos chegado a um acordo sobre o que existir
quer dizer)
eu acho que ele era do tipo que podemos chamar solitário,
e que ser solitário como eu imagino que ele tenha sido
é estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares e em
lugar nenhum
é ser ao mesmo tempo todo mundo e ninguém.
Ser Fernando Pessoa é ser tudo, para ele somente.
E alguma coisa que tem a ver com o sono.
T.S. Eliot precisava de Deus para amar
e para escrever o que ele escreveu.
A metafísica dava náuseas em Fernando Pessoa
porque a metafísica supõe uma dualidade
que lhe revolvia o estômago.
Esta náusea da alma (que ele mantinha
ao escrever o que ele escrevia)
lhe fez escrever o que ele escreveu
até não poder mais pensar, até este esgotamento
que tem a ver com o sono.
A voraz banalidade das coisas cotidianas
é seu ponto de partida e seu ponto de chegada.
Ele não pega uma coisa qualquer da realidade de todos os
dias
para destacá-la e lhe dar um sentido
mais alto, nem outro sentido qualquer que esteja fora dela
mesma.
Ele pega uma coisa banal que ele expõe por um momento
à luz enganosa da metafísica
para recolocá-la, inalterada – ou quase –
na banalidade voraz das coisas cotidianas.
Seigen Ishin afirmava que antes de estudar o Zen
sob a orientação de um bom mestre
as montanhas são montanhas e as águas são águas.
Que, chegando a uma certa visão interior da verdade,
as montanhas não são mais montanhas
e as águas não são mais águas.
Mas que uma vez atingido o estado de quietude,
de novo as montanhas são montanhas
e as águas são águas.
Eu não compreendo muito bem o que isso quer dizer,
mas eu acho que Fernando Pessoa teria ficado contente
de ouvir essa história.
Sem sombra de dúvida, é em torno dessa questão,
ou de alguma coisa próxima a isso, que giram sua lucidez
e sua retórica de gerânio.
e sua retórica de gerânio.
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emmanuel hocquard nasceu em cannes em 1940.
emmanuel hocquard passou sua infância e adolescência em tânger
tânger é muito presente na obra de emmanuel hocquard
emmanuel hocquard começou a publicar seus textos como plaquetes nos anos 60
na editora artesanal que ele criou com a raquel lévy
a orange export ltd.
a orange export ltd.
em 1978 saiu seu primeiro livro por uma editora comercial (pol)
"eu não sei se fernando pessoa realmente existiu"
foi tirado do livro um detetive em tânger (pol, 1987)
e leitura do poema que abre esse post foi gravada em 2009
na casa de emmanuel hocquard em mérilheu
vila que fica nos pirineus franceses.
mais textos traduzidos de hocquard aqui
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