Talvez a revolução esteja em seus corpos e eu não a veja
Essa é a história de uma bicicleta roubada
Sei apenas que perto do canal está o dono
ou a dona
Perto do canal,
perto de um canal
Mas esqueci o nome das ruas
Uma madrugada saímos depois de beber em um bar revolucionário
e minha bicicleta estava presa acidentalmente a outra
uma corrente se enredava por entre os cabos do freio e
a mantinha
sujeita a um poste
Todos iam embora
em táxis
em ônibus
em carros que estavam cheios
e eu não podia pegar minha bicicleta
tive que deixá-la ali
Se alguém a encontrar ali
vai quebrar o cadeado
e levá-la embora
mas de qualquer jeito era roubada
comprada por um preço muito baixo
no mercado de pulgas
ou em um quintal de fundos suspeito
de uma mulher imigrante
não se entendia muito bem o que ela dizia
mas de todo modo dizia:
“esta ser bicicleta minha velha”
“esta não ser roubo”
São três horas da tarde de um dia de verão com vento
As árvores que até agora estavam secas
movem-se extremamente carregadas
de folhas transbordantes de vida
Em vez de neve, fibras de pólen alongadas que voam
como insetos
Alguém prendeu sua bicicleta acidentalmente à minha
não sei se é um acidente ou um roubo
não sei se é um roubo ou se é a verdadeira dona
que sei que existe porque um dia se aproximou de mim em um parque
Eu não sou a verdadeira dona, eu a comprei
por este preço tão baixo
neste quintal
nos fundos
ou mercado de pulgas
de uma mulher com sotaque de estrangeira
de cabelos compridos e jeans gastos
que dizia
“não perigo, esta ser bicicleta minha passado”
Depois de conhecer a felicidade da bicicleta
Estar sem ela é como viver sem asas
Passavam os dias e a bicicleta seguia ali na ponte
o dono não vinha desatá-la, era verão, voava o pólen
manchado de sol
eu pedia bebidas que me faziam mal
como expresso
café
preto
sem leite
olhava para a bicicleta do outro lado da ponte e chorava
A bicicleta rosada presa
através do cabo do freio
por engano
à bicicleta celeste, oxidada, de um desconhecido
O sequestro da bicicleta roubada acontece
durante a única semana de sol do ano
As coisas grandes
as coisas raras
acontecem em momentos de decisão ou de loucura
por exemplo:
deixar seu país,
cortar o cabo do freio
com um alicate para liberar a bicicleta,
desfrutar
gozar
com o crime
quebrar a roda da outra bicicleta ou
jogar ácido no banco
Algo assim.
A bicicleta era a minha única fonte de diversão
Agora que está chegando o verão
e são poucas as horas de verdadeira noite
a bicicleta era a minha melhor,
minha única amiga
Sei que parece besteira
é até tão simples
mas passeando de bicicleta pela cidade
me sentia livre
a cidade era como uma paisagem
que eu podia ver de graça
passando a toda velocidade
pela janela de uma trem inter-city
só que a janela não tinha caixilhos
era uma janela sem limite
e rosada
uma janela com forma de bicicleta rosada
roubada
comprada de uma garota
que dizia “não ser perigo, não roubado, minha antes bicicleta”
Eu sabia que era roubada
mesmo assim comprei
Um dia em um parque chegou para mim
a verdadeira dona
uma mulher de uns trinta anos
e disse que aquela era sua bicicleta
mas eu a defendi com unhas e dentes
inventei uma história estranhíssima
complicada
com muitas etapas
de como essa bicicleta tinha
vindo de Paris de barco
pelo correio, desmontada
em uma caixa de papelão
enviada como presente por um ex-amante
Se me tiram a bicicleta
o que mais me resta aqui?
Sim,
há os cafés revolucionários
onde se discute o futuro do mundo
Mas nada
nada
pode se comparar
a ela.
Cecilia Pavón nasceu em Mendoza, Argentina, em 1973. Publicou dentre outros, Pink Punk (2003) e este, ao lado, Caramelos de Anís (2004), onde podemos ler o poema "Bicicleta roubada sequestrada". Cecília Pavón participa do coletivo Belleza y Felicidad, que faz edições e exposições, e vive em Buenos Aires.
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